sábado, 21 de setembro de 2019

Porque Marielle foi assassinada?

Porque Marielle foi assassinada?



Na luta do campo a história brasileira mostra que a posse da propriedade, que significa poder para o capitalismo, implica na sua defesa radical pela classe dominante. De Canudos à Palmares, das Ligas Camponesas ao Movimento dos Trabalhadores/as Sem Terra (MST), as reações radicais das  elites foram violentas, massacrantes e assassina. 

Indivíduos e seus coletivos foram dizimados, sem piedade, mesmo que longe dos grandes centros de decisão do poder, apenas cultivando suas próprias formas de sociabilidade e de relações sociais e numa busca particular e endógena de viver suas vidas longe da lógica hegemônica, talvez essa última seja o elemento que chamou atenção dessas elites.

Indicando que nossa classe dominante sofre de ansiedade no tocante a preservar seus interesses e privilégios, como já disse essa mesma elite no decorrer da monarquia e na formação da República, “façamos a revolução antes que o povo à faça” expressa bem essa preocupação.

No caso de Marielle os sinais são evidentes. Em um contexto de "ordem" combinada com o medo como meio de controle de grupos excluídos das rendas médias, uma massa aprisionada nas favelas, na “subnormalidade" como define o IBGE, tende a ser uma permanente “panela de pressão” que precisa ser contida pelo “pão, circo e repressão”.

A permissibilidade de violências e sonhos individualizados vão sendo introduzidos como regras cotidianas e o personagem, o “da favela", precisa ter supervalorizado sua superação como espetáculo e vitória pessoal, do indivíduo, não podendo nunca ser um processo coletivo.

Importante sinalizar na história que Canudos e Palmares não se organizam como sociedades de enfrentamento à ordem, com uma busca por impor sua visão de mundo e por uma disseminação exógena a fim de alterar o poder universalmente. Muito pelo contrário.

Suas perspectivas eram diferentes, em Canudos, sua liderança, Antonio Conselheiro, propôs uma sociedade alternativa e híbrida, sincrética na relação com a religião e uma sociabilidade fora da "ordem". Já Palmares também como sociedade alternativa, surge da resistência negra à escravidão e se torna nun lugar de acolhida dos negros/as fugidos dos latifundiários, com essa condição particular de resistência já que isso conflitava com a estrutura escravista do período. A característica principal de ambos, é se propor a constituir novas relações sociais, onde não é mediada pela concentração de riqueza como meta síntese do mundo pré e pós capitalista. 

Eis o risco e necessidade de destruir essas experiências do ponto de vista da classe dominante.

Em “Cabra marcado para morrer", obra de Eduardo Coutinho, um documentário interrompido em 1964 era a história de um líder das Ligas Camponeses assassinado pela elite latifundiária da época representa a iniciativa essa elite em impedir o acesso a propriedade e sua eventual socialização. Temor que torna o seu contemporâneo, o MST um perigo na atualidade.

O centro dessa reação conservadora e violenta não está na manutenção da ordem ou do poder. Mas no risco da proposta por uma nova ordem e um novo poder, mais amplo, socializado e contra a concentração de riqueza em uma minoria.

As periferias urbanas que concentram a massa empurrada a margem das cidades, da cidadania e das possibilidades socioeconômicas, concentram também as vontades, sonhos, insatisfações, indignidades, oportunismos, interesses, solidariedades, enfim, reúne o ser social enquanto força de trabalho vivente, excedente e descartada, mas ainda resistente e pulsante. Essas duas últimas coisas que se fossem possíveis de retirar da alma humana, seria logo extraída pelo capital. Se fosse possível uma lobotomia social, isso seria idealmente, a grande vitória do capital, do opressor, do dominador sobre os dominados.

São esses elementos que respondem, em muito, o crime e o castigo de Marielle.

Enquanto essas periferias urbanas estiverem controladas pelo binômio repressão-superação individual, onde os conflitos midiatizados contribuem para narrativas da “dama e o vagabundo", do salvacionismo dos “bons" contra os maus" e o apoio das “boas almas" em ajuda aos miseráveis, tudo isso favorece a ordem vigente.

A vitória eleitoral de Marielle precisa ser analisada mais pelo antes do que pelo depois. Porque? Porquê é a capacidade de organizar, articular e efetivamente propor uma nova forma de resistência política, cultural e institucional que explica muito os fatores do seu assassinato. Evidente que em termos de política partidária e eleitoral, as esquerdas sempre obtiveram, mais ou menos, os votos das periferias, em particular, quando há uma relação orgânica em sindicatos, associações e outros movimentos. Marielle vem desse organizar as periferias, com uma particularidade, a raiz.

Sua origem da própria periferia remete a uma relação concreta que foi interrompida em 1964, retomada no período da redemocratização no final de 1970 e reduzida no processo de institucionalização da esquerda no poder, expressa na estratégia do Partido dos Trabalhadores (PT), que foi sendo reestabelecida e depois no seu descolamento dessa última devido a estratégia eleitoralista de 1990 e 2000.

Só a tática eleitoral não levaria a ameaçar a vida de Marielle, mas a sua insistência em manter suas raízes. Não mudar suas relações sociais, não mudar de local de moradia, não mudar sua identidade política por uma completamente institucionalizada, enfim, esse “não mudar” contrária as seduções burguesas no campo político institucional.

Parte da resposta de seu assassinato vai se formando. O incômodo das elites emerge da insistência da mesma. A raiva dispersa dessas elites aciona os dispositivos hegemônicos que vai reunindo seus "juízes", ainda sem uma pena, mas já decididos pela sua condenação.

Na luta parlamentar é tradicional os mandatos de esquerda estabelecerem contraponto a "ordem", isso quando não representam o governo de momento.

Contudo, a vida parlamentar tende a institucionalizar o indivíduo, mesmo sendo condição intrínseca do papel parlamentar, em alguns casos há um descolamento da base original dada distância do Estado e da sociedade no debate público e onde a lógica representacionista é marca da democracia liberal.

Esse cotidiano institucional parece não ter contaminado a perspectiva de resistência no projeto político representado por Marielle. E essa posição pode ter definido sua pena no processo condenatório das elites.

E concluo minha hipótese do assassinato de Marielle. Sua origem, sua raiz, sua organização, articulação, resistência e a construção da insistência em permanecer enraizada nesse não-lugar a que estava reservado pela classe dominante.

Voltemos para a questão periferia urbana e o papel na qual a classe dominante a condicionou de repressão-superação individual que determina a coexistência entre o exército de mercenários e a força militar estatal, traficantes e polícia, num jogo de cena que mantém a ordem “natural" das relações sociais no capitalismo, com valorização do valor individual das “conquistas” meritocráticas.

A representação que causou temor e a condenação de Marielle é justamente a resposta contrária a lógica repressao-superação individual, denunciando e rompendo com o processo das relações entre exércitos de mercenários, força militar estatal e a milícia, força opressora hibrida composta de ex-policiais (civis e militares), que organizam a corrupção e o controle das comunidades nas periferias urbanas.

Não se seduzindo pelo fetiche da luta parlamentar, reativou a velha tática e estratégia do mandato a serviço da luta de classes, atualizada pela resistência popular com raiz nas periferias urbanas.

Julgamento, condenação e pena. Diferente de representantes políticos externos dos interesses da classe trabalhadora nas periferias urbanas, mas que constituem capilaridade por meios de lideranças, assessores e outros, Marielle sai dessa condição, alça representatividade e força alternativa ao jogo de cena regular e adequada a ordem, ou seja, Palmares não pode coexistir e nem existir, sua existência gera a tentação pelo questionamento a ordem. 

E assim defendo minha hipótese de seu brutal assassinato.

Podem haver milhares de suposições e indicações oficiais de seu assassinato, desde uma “briga" pela disputa eleitoral a até diferenças quanto a sua pauta de lutas. Mas, efetivamente o foco do seu mandato eram as lutas pela pauta geral da classe trabalhadora e os questionamentos ao governo da capital carioca, que eram feitas por ela via bancada. Se sua vida foi ameaçada pelas suas denúncias, então todos os seus colegas de Câmara de vereadores estariam também ameaçados.

Porque apenas Marielle? Olhando para as tarefas do mandato, não há uma questão exclusiva ligada dela diretamente em ameaçar o poder, já que sua pauta era coletiva. Não era um mandato pautado pelo denuncismo midiático em busca de votos.

 Então porque Marielle?

Marielle foi assassinada porque igual a Palmares, Canudos, as Ligas Camponesas, o MST e todos/as lutas e sujeitos ligados a sua raiz histórico e social de propor uma reflexão crítica dos que vivem a margem do capitalismo tem efeitos muito mais destrutivos ligados à resistência na raiz dos despossuídos, subalternos e excluídos.

Ela teria sobrevivido se mantivesse sua pauta política institucional mas descolada da sua raiz periférico urbana. 

Porém, jamais seria essa luz que ilumina a melhor resposta do momento político que vivemos: que se mesmo a periferia seguindo as regras do jogo não pode resistir nem por meio da fraca democracia liberal brasileira sob o risco de perda da própria vida, então, sobra a radicalidade como resposta.

Vamos fazer Palmares de novo!