sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

PNE entre passos e impasses.





PNE entre passos e impasses.

2013 foi mais um ano marcante na vida da educação nacional. O Plano Nacional de Educação (PNE) que caminha a passos de tartaruga no congresso nacional ganha aos poucos a sua forma. O problema é o rol de interesses, muitos privados que rondam o PNE e agora ficam cada vez mais claros quando se aproxima a votação final.

O Projeto de Lei nº 8.035, de 2010, na origem, de autoria do Presidente da República, tramita como Projeto de Lei da Câmara n. 103 de 2012 e agora finalmente foi aprovado no senado e segue o ano de 2014 para a Câmara dos Deputados (as). Nele estão debates, recuos e novidades para educação no Brasil e que nós enquanto sociedade precisamos estar atentos.

Dos desafios colocados temos uma velha meta a “erradicação do analfabetismo” e a “meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade”, ambas estão presentes a muitas décadas e já foram exploradas eleitoralmente pelos governantes que passaram pelo comando do Estado Brasileiro.

Das diretrizes uma será fundamental que é a “promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental”

Não podemos deixar que o PNE seja uma nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), que durante a “ditadura civil” de FHC trocou o documento que estava sendo debatido a nos pelos congressistas e pela sociedade até 1994 e no seu lugar colocou um novo texto assinado dramaticamente pelo senador Darcy Ribeiro que legislou a serviço dos interesses pela financeirização da educação nacional e seus órgãos internacionais, Banco Mundial e FMI.

É este período em que o neoliberalismo ditou regras duras sobre a educação, atacando o direito universal e o acesso dos jovens ao ensino médio e superior de qualidade. O ministro da educação do governo era ex-funcionário destas organizações financeiras que atuavam a partir dos interesses do capitalismo global.

1995 a 2001 foram intensas as lutas contra a reforma educacional dos governos FHC e Covas em São Paulo, onde enfrentamos a interrupção e fechamento dos cursos técnicos federais, ampliação brutal dos cursos particulares, principalmente no ensino superior, fechamento de escolas de ensino médio, inicio da cobrança nos cursos oferecidos pelo Senai, aplicação de medidas para manter uma “média” educacional baseada em matriculas obrigatórias apenas do ensino fundamental (antigo FundeF), desobrigando estados e municípios com a educação infantil, média e superior, desvalorização progressiva das carreiras na educação com precarização das condições e direitos dos trabalhadores da educação, em São Paulo o encerramento do projeto Cefam (Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério), representou um retrocesso, pois um projeto bem avaliado estava sendo eliminado, entre outras medidas.

Passadas duas décadas de conflitos ainda temos uma LDB sem rumo para garantir o direito público e universal a educação, com uma coexistência nada pacífica com entidades privadas de ensino que buscam financeirizar ainda mais o ensino com a ampliação de “sistemas” oferecidos por escolas privadas ou “empresas” educacionais, bem como a entrada ilegal de capital estrangeiro via instituições privadas que ferem a soberania e os direitos constitucionais brasileiros. (veja o debate em http://revistaforum.com.br/blog/2013/08/sob-o-dominio-do-capital-estrangeiro/)

É no meio deste redemoinho é que está o PNE, portanto conhecer o documento na íntegra e lutar para que seja realmente um norteador da educação pública, universal e de qualidade social para a sociedade brasileira é dever de todos e todas nós.

Dos pontos eu destacaria primeiro a polêmica do financiamento que está presente em vários pontos, contudo a parte referente de onde vem o dinheiro ainda é uma grande dúvida, pois o parametro do financiamento da União, estados e municípios dependerá do chamado “custo-aluno/ qualidade” em cada modalidade de ensino que já gerou grandes debates pois a criação do Fundo do petroléo como uma especie de “poupança da educação” foi rejeitado, e o relator entendeu que já havia o “acréscimo de recursos provenientes da exploração do petróleo às verbas da educação já esteja previsto no substitutivo”.

Outro problema são aos meios a serem estabelecidos, uma vez que a campanha Todos pela Educação propõe a meta de 10% já na sua implementação, o MEC avalia que a progressividade de 7% para chegar aos 10% ainda é a meta “alcançável”, vamos lembrar que durante o governo FHC a bancada do PT votou favorável aos 10% e depois a um projeto de lei de 7% apresentando justamente por um congressista do PSDB que foi vetada na época.

Diz a meta 20:

Meta 20: ampliar progressivamente o investimento público em educação pública, de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto (PIB) do País no quinto ano de vigência deste PNE e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio, observado o disposto nos §§ 5º e 6º do art. 5º desta Lei e assegurados mecanismos de gestão e critérios de repartição que visem a combater a ineficiência e as desigualdades educacionais”

Nas suas estratégias vale destacar:

20.2) aprovar, no prazo de um ano da publicação deste PNE, lei que defina a participação percentual mínima da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no incremento de verbas destinadas à educação para o alcance da meta (...)”

O problema que mesmo que aprovado o PNE ainda estará inconcluso, pois haverá nova rodada de debates para saber qual percentual mínimo deve ser incrementado, ou seja, o PNE pode ser aprovado, mas sem pactuação clara de recursos. No centro da polêmica é a partilha que esta estabelecida na Constituição onde municípios e estados devem investir 25% e a União 18%, não sendo igual entre os entes e gerando desigualdades quanto aos recursos distribuídos.

Outra estratégia,

destinar à manutenção e desenvolvimento do ensino, em acréscimo aos recursos vinculados nos termos do art. 212 da Constituição Federal e do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e aos recursos previstos no § 7º do art. 5º
desta Lei, 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, das compensações financeiras auferidas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios decorrentes da exploração mineral e da exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica;

Que é a forma criada para poder utilizar parte dos recursos do petróleo e principalmente dos recursos oriundos do pré sal, contudo não representando de forma progressiva um aporte maior no financiamento da educação, pois depende do desempenho do que for efetivamente extraído dos recursos minerais, hídricos e energéticos. Não sendo fonte segura para educação.

Agora o próprio Ipea (órgão de pesquisas do governo federal) emitiu comunicado técnico (124/2011) comprovando que há meios de chegar a meta de 10% com um amplo plano de financiamento e de alocação de recursos possíveis, porém a contribuição foi ignorada tanto pelo governo, como pelo congresso nacional. (veja o documento do Ipea: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=12629)

Outro grande desafio é garantir a educação que inclua da educação infantil de 0 até a universidade, ponto que foi retardado neste PNE em nome de metas mais adequadas aos interesses dos organismos internacionais que medem a qualidade pela média das notas alcançadas em provas anuais e não pelo conjunto dos índices que cruzam o desenvolvimento socioeconômico, acesso igual e equânime e elevação de escolaridade.

O compromisso pela ampliação e promoção dos cursos técnicos não pode representar uma nova ofensiva contra os jovens filhos (as) de trabalhadores (as), que na década de 1990 viram seus direitos serem eliminados com uma frase do ex ministro da educação, Paulo Renato que dizia que “era ruim os jovens terminarem o ensino técnico e já ingressarem na universidade”, ou seja, colocava em questão a qualidade dos Institutos Federais (antigos Cefet`s) que possuem uma formação escolar em níveis invejáveis e que permitiam (e permitem) o ingresso nas universidades do país. A lógica neoliberal não admitia que houvessem operários, “peões e peoas”, filhos (as) de trabalhadores (as) apenas “satisfeitos” com o ensino técnico e sub empregos para o mercado de trabalho.

No PNE a meta que trata do ensino tecnico compreende:

15.10) fomentar a oferta, nas redes estaduais e na rede federal, de cursos técnicos de nível médio e tecnológicos de nível superior, destinados à formação inicial, nas diversas áreas de atuação, dos profissionais a que se refere o inciso III do art. 61 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;

Ou seja, destinado a formação inicial, não impede que se alcem outros níveis de ensino superior e claro o reconhecimento necessário dos saberes e conhecimento enquanto sujeito de direitos dentro de uma lógica educacional que permite elevar o quanto for necessário, preciso e da vontade da pessoa, sem que seja um mero “apertador de botões”. Contudo é preciso ter nesta estratégia a clareza de que será garantida e ofertada todas as possibilidades de acesso ao ensino superior.

Na luta pelos direitos das mulheres e principalmente pela mudança de paradigmas familiares em nosso país a meta que trata da:

1.16) estimular o acesso à educação infantil em tempo integral, para todas as crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos, conforme estabelecido nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.


Poderá, em parte, representar uma mudança na questão do direito das mulheres e das crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos se garantido o direito principalmente às mães trabalhadoras dentro do contexto de uma sociedade onde a exploração do direito ao trabalho sobre as mulheres possui níveis altissímos de desigualdades, alimentados por valores morais ultrapassados e dominantes na sociedade.

E por fim uma questão que pode transformar as escolas em cadeias de jovens adolescentes, que é a meta:

Meta 6: oferecer educação integral, com ampliação de espaços e conteúdos de aprendizagem, em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, até o final do quinto ano de vigência do plano, e a todos os alunos da educação básica até o décimo ano de vigência do plano.”

Vai na contramão do direito a cidade e dos pressupostos do Estatuto da Juventude que permite a participação, o protagonismo e os direitos fundamentais de decidir desta juventude. A integralidade da educação não se dá no espaço fisico, apenas, mas na ocupação do espaço geográfico a quem pertence o sujeito, no caso as cidades. Parece que nossos legisladores (as) não aprenderam nada com as manifestações de junho de 2013 quando os jovens diziam que “não era pelos 0,20 centavos, mas por direitos”, ou seja, transporte está no centro de um Plano de Políticas Públicas de juventude que compreende o direito de circular, apreender sobre os lugares, enfim, educar é permitir que se possa cruzar a cidade, as fronteiras e conhecer o seu espaço – cidade.

O horror desta meta são suas estratégias que buscam justificar o injustificavél sobre o “ensino integral”, ou “cadeia juvenil pré estabelecidada”, pois uma delas aprovada entre as emendas dos senadores diz,

A Emenda nº 86 cuida da implantação de escolas de tempo integral para a população de 4 a 18 anos. O propósito já está atendido, de modo mais amplo, pela redação dada ao caput da meta 6 no substitutivo, razão pela qual podemos considerá-la parcialmente acata.”

Isso sem falar nas inúmeras bobagens dos itens da estratégia que tratam de prédio, curriculo, horas a mais a serem pagas aos professores, atividades esportivas e culturais, enfim, coisas que pertencem ao bairro, a cidade, ao estado, ao país, garantir PASSE LIVRE nos transportes seria um bom investimento na EDUCAÇÃO EM TEMPO INTEGRAL que considera o jovem-aluno sujeito em construção que busca na ocupação do espaço-cidade, do pertencimento dos lugares, do território toda garantia de uma formação humana, diversa e ampla.

Do mais, o PNE é um desafio de duas décadas para aqueles que contribuíram lá atrás e para os que continuam nesta luta pela educação. Não qualquer educação, como vimos, ela está em disputa.

Qual é o projeto que você defende? Ou você prefere repetir como um papagaio, tudo que a mídia diz. “Não é pelas criancinhas, o PNE é pela construção soberana de nação”, uma educação negra, popular, trabalhadora, periferica, participativa, pública, de qualidade e controle da sociedade, não financista e nem mercadológica, ou seja, para todos e todas.

2014, a luta continua!



Fontes de consulta:

O Financiamento da Educação no Brasil


MANIFESTO
Não à desnacionalização da Educação Superior Brasileira

A REFORMA UNIVERSITÁRIA DE 1968 E A ABERTURA
PARA O ENSINO SUPERIOR PRIVADO NO BRASIL de CARLOS BENEDITO MARTINS

Restrição de 30% de capital estrangeiro em universidades pode mudar


Estrangeiros no ensino


Deputados divergem sobre capital estrangeiro em instituições de ensino


FUSÕES INSTITUCIONAIS NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO:
IMPLICAÇÕES NO TRABALHO DOCENTE

Grupos estrangeiros tentam comprar faculdades privadas


Os novos “vândalos” do Brasil, por Eliane Brum


Os novos “vândalos” do Brasil


fonte: http://www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22538-eliane-brum-rolezinhos-o-que-estes-jovens-estao-roubando-da-classe-media-brasileira


O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe média brasileira?
eliane brum



O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.

Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?


Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.

Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.


“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.


A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.


As novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.”


O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista ao documentárioaqui). Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.


Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.


A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.


Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.


Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito pessoas.


Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.


A ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.”


Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?


Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira
- O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?


Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.


Pergunta. Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou...


Resposta. Primeiro que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.


Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”


Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.


Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.


Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo?


Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.


P. É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?


R. Os rolezinhos nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”


É importante perceber que os shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”


P. Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este fenômeno tão novo?


R. Não me arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.


Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao hegemônico, produzindo dissonâncias.


O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.


P. Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?


R. O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.


Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”


Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do herói.


P. Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?


R. São muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente vilões e mesmo bandidos.


Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca positiva.


P. Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?


R. Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?


O que são os videoclipes de funk ostentação que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social?”


Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.


P. A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?


R. A escolha da música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.


P. Hoje, uma parte significativa da geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?


R. O que um evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se vestir.


P. Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da ostentação falam de consumo?


Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”


R. Há aí duas perspectivas. Quando digo que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs, mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se empreendedores e criando seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso das roupas de grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.


Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.


P. Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma reivindicação desta geração, acima de questões como saúde, educação e transporte de qualidade?


R. Acho que não há uma reivindicação política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão. Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece intencional. Acho que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder pelos espaços da cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por exemplo, no caso do manifesto da arte periférica dos escritores.


P. Há também um movimento maior para sair dos guetos e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou periférico publicava numa grande editora? Esta é uma novidade importante?


R. Acho que abre, sim, para fora do gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas públicas de cultura, por exemplo.

É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo’.”


Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam, com som alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o grande vilão ou o grande movimento de corrupção da juventude contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda e à direita, tendem a fazer.


A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso do funk da ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que ocorreram e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo, como o próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.


Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode ser uma forma encontrada para tentar brilhar.


P. Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, interpretadas, em geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida que se apropriam, simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora, com os rolezinhos, também de seus espaços físicos?


R. Sim, acho que essa é a maior irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo a legislação colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e artigos considerados finos...


P. Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades instituídas. Como você interpreta essa reação?

Os comentários em sites e redes sociais revelam esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população brasileira.”


R. O que me assustou de verdade nessa história toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando prender, mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias. Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras utilizadas como categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram bastante reveladoras do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social: “favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso, inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.


P. A classe média é racista?


R. O que chamamos de classe média não é um todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média que está concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos: porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.


Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia. Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda que por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da cidade, formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto, que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?


A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família, é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola era o fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de música, ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas. E são estes professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para os jovens?


P. Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?

Para uma parcela da classe média de São Paulo, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.”


R. É necessário pensarmos em uma educação para as diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de setores das elites e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história de um arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assista aqui). Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.


Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...


P. Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações de junho?


R. Acho que não há uma ligação direta. Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem, nós também queremos!”


P. Essa ocupação de espaços que supostamente pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no caso dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está acontecendo?


R. Acho que a novidade está aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços urbanos, amplamente negada até então.

Aqui não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros que moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...”


P. Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?


R. Rolezinho é um termo que está diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de se divertir na cidade.


P. Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?


R. Sim, principalmente numa sociedade em que pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como prova de que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.


P. Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?


R. Acho que a melhor palavra é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao mesmo tempo.


Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma Duas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Vamos dar um rolêzinho no shopping?


fonte da foto:http://f.i.uol.com.br/folha/cotidiano/images/13356230.jpeg

O role que causa o espanto dos visitantes e comerciantes dos shoppings deveria ser tratado como questão de estado e preocupação coletiva pelos seguintes motivos:

O modelo de desenvolvimento do capitalismo que atuou contra a juventude nestas três últimas décadas com a mercantilização da educação, sub empregos e negação de direitos.

O paradigma das cidades urbanas que evoluíram para determinar o lugar das classes, avançando sobre os centros, cercando economicamente e socialmente espaços urbanos e constituindo nos centros comerciais como lugar do " lazer" da classe trabalhadora, e empurrando os jovens para essa lógica.

E claro colocando a juventude na centralidade dessa estratégia enquanto geração "consumidora", basta observar a postura das grandes corporações diante das classificações das gerações, numa intenção de determinar as faixas consumidoras.

Agora o problema que a "besta do imperialismo" (segundo Che Guevara) não podia imaginar na sua lógica: como conciliar numa mesma juventude retirada de direitos como educação e trabalho, e uma alta condição consumidora atribuída? Essa resposta só o capital pode responder.

Mas principalmente os movimentos, entidades o organizações de juventude também devem analisar e compreender quais respostas essa juventude quer expressar. Os rolêzinhos em shopping`s e locais públicos, bailes funk`s, pancadões, enfim, formas e meios de encontros e reconhecimento social, de agrupar e promover divertimentos coletivos.

Os jovens em resposta apostam nos "rolêzinhos no shopping" como forma de dizer "existimos"! E ainda estimulados o tempo todo para consumir todo tipo de produtos . E quem são esses jovens?

Uma parte destes fazem parte os quase 26% de jovens dos 15 aos 24 anos que nem estudam e nem trabalham segundo dados do Pnad (Pesquisa Nacional de Amostragem de Domicilios) e analisando pelo Ipea (órgão do governo federal), que analisa o que chama de geração nem, nem (nem estudam e nem trabalham), que parte sustentados pelas suas famílias e vivendo num contexto social onde a educação nacionalmente é fraca (reflexo dos acordos do MEC e órgãos internacionais como Banco Mundial), que leva em consideração apenas as matriculas e não a qualidade.

É uma geração que não é estimulada a descobertas e nem a criação, vêem o mercado do trabalho a partir da ascensão e não do processo, tem pressa e ao mesmo tempo sentem ter tempo para questões como carreira, família e outras que levem em consideração um grau de responsabilidade, são carregados pela alta evolução tecnológica, mas  não conseguem lidar com problemas cotidianos, enfim, são gerações sendo forjadas com mais pragmatismo e menos idealismo.

Esse choque de paradigmas levam ao fato que tende a manter-se como expressão deste momento histórico para esta geração que vive um dos períodos socioeconômicos mais estáveis em termos de desenvolvimento com recorde histórico de carteiras assinadas, contudo não tem evoluído a partir da escola que em pleno século XXI mantêm velhos paradigmas, inclusive morais no seu interior. A educação ainda é elemento fundamental quando falamos de inclusão e direitos da juventude porque tanto na formação de profissionais qualificados, quanto na formação de uma nova geração de novos adultos na sociedade.

Caso o Estado e a sociedade através da mídia comercial trate a questão dos "rolêzinhos"  como caso de "polícia"  ira radicalizar desnecessariamente um processo que expressão da nova reconfiguração da formação sociohistórica da sociedade brasileira que esta sendo protagonizada por parte desta juventude.

Portanto lidar com os jovens dos "rolês" exige diálogo, debates e a ampliação dos espaços participativos e interativos com a juventude.

Outra urgente resposta é a implantação dos direitos previstos no Estatuto da Juventude, sancionada pela presidenta Dilma em agosto deste ano.

Não há soluções fáceis para este que não deve ser tratado como problema, mas sim como desafio para sociedade, o Estado e as suas famílias.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Para além das eleições


Para além das eleições

A polarização PT e PSDB parece uma cortina de fumaça bem definida pelo PIG (Partido da Imprensa Golpista), que tenta a todo momento resumir a disputa do estado brasileiro a uma rinha de dois partidos pelo poder. A verdade é que quando a mídia confronta e estabelece uma distancia pequena entre petistas e tucanos quer inclusive romper com essa lógica.

Ambos foram importantes para os interesses da burguesia e elites em nosso país, cada qual com sua medida e seus interesses. Fato, a regulação da mídia e o controle social da comunicação não saíram e isso já é vitória desses setores que sustentam através do status quo as relações de classe neste país.

Comunicação de massa, publicidade, opinião pública, marketing, propaganda, enfim todos os instrumentos conhecidos canalizam para manutenção de uma velha concepção ideológica chamada de hegemonia (Gramsci), poder exercido com muita maestria e sustentada pela mídia mercadológica.

O enfraquecimento do estado, ridicularização de pessoas em cargos públicos (“os políticos”), a idealização de heróis (Barbosa e outros), tudo uma estratégia pensada e orquestrada para encobrir outro Brazil que se gesta a cada crise e cada triunfo do capitalismo em nosso país. Repito, capitalismo em nosso país, porque a ideia de capitalismo nacional não está mais em voga em tempos de neoliberalismo.

Neoliberalismo que se sustenta cada vez mais por uma rede de mercados, corporações, grupos (como as Holding), enfim uma infinidade de sub classes que apoiam o sistema, ou seja, o combate passa por enfrentar essa rede.

E porque o título? É preciso retomar as perspectivas dos que reivindicam o projeto alternativo, popular e anti capitalista, neste caso, nós militantes socialistas e comunistas.

Para nós da esquerda do PT ficam as lições necessárias do Processo de Eleições Diretas do partido que mesmo que tratemos com festa é evidente o tamanho das nossas correntes de pensamento no interior do próprio partido. Cada vez mais devemos fazer o debate partindo das nossas lutas.

O governismo tem criado abismos profundos entre o que defendemos e o que realizamos. E não falo em programa máximo como reforma agrária ou erradicação da falta de vagas em creches, mas sim da efetivação das bases para fortalecer os movimentos sociais que tem na sua luta estas pautas.

Pode um governo não ser capaz de fazer a reforma agrária nos limites impostos hoje, porém é dever do governo ter posição, fortalecer e financiar ações, projetos e programas que permitam avançar renda e consciências em articulação com os movimentos, tornando cada nova conquista uma conquista do povo organizado.

Não basta distribuir uma parte da riqueza produzida que foi capitaneada pelo Estado por meio dos impostos se este mesmo Estado não consegue fortalecer nas relações com a população a defesa, pore exemplo, de se manter os atuais tributos que incidem sobre o lucro para manter um sistema de seguridade social que temos hoje, público e que de fato faz (com seus limites) um pouco de justiça social.

É preciso exigir de nós mesmos mais. Se buscarmos compor alianças conservadoras, elaborar programas de governo populistas ou tecnicistas e irmos para as eleições de 2014 assim, mesmo que possamos vencer nas urnas, podemos perder nas ruas.

O estado de São Paulo é o centro da econômia capitalista nacional. Concentra os quadros desta burguesia e desta elite. Dirige daqui os processos políticos que devem ser defendidos por uma classe dominante de nosso país. Os demais representantes nos rincões do Brazil vivem seu mundo colonizado nos demais estados, mas centram aqui.

Será que venceremos? Mesmo com o melhor candidato, melhor campanha, melhor aliança, melhor partido, melhores quadros, melhor recursos, será fácil vencer aqui? E porque queremos mesmo vencer aqui?

Algumas pautas mostram quais devem ser nossas prioridades, para além das eleições.

Primeiro, retomar o papel do estado sobre seu patrimônio: seus recursos naturais como energia (Cesp e Daee), as terras devolutas para reforma agrária como no Pontal do Paranapanema, o patrimônio sociocultural e afrodescendente do Vale do Ribeira, entre outros.

Segundo, enfrentar a questão da violência com a participação e organização da população com uma reforma da segurança pública com decisão política centrada no combate a violência institucional contra a juventude negra, pobre, trabalhadora e periférica, com investimento pesado em direitos de cidadania nas regiões onde vivem essa juventude.

Reconstruindo o processo inverso do sistema penal e das medidas socioeducativas, devolvendo os presos políticos do governo do estado de São paulo que passou as duas décadas penalizando a juventude das periferias sem construir uma alternativa ou oportunidades de direitos.

Terceiro, a educação não pode ser remendada com mais uma fórmula para resolver o abismo do projeto educacional neoliberal. Devemos entender o contexto das reformas de 1996, sua causa e consequência sobre a educação estadual, o analfabetismo funcional gerado por esta política, a manutenção do status quo de escola fechada, institucionalizada e antiparticipativa, sem um projeto pedagógico claro (qual posição, que concepção defende), para além do processo neoliberal.

Não há reforma que solucione este problema senão uma reforma que atenda o princípio da ocupação da população, ou seja, uma tomada do poder popular sobre a escola fisicamente e pedagogicamente, compor com as organizações e movimentos pela educação sem medo dos organismos institucionais e suas avaliações representativas do Banco Mundial.

Quarto desafio, é enfrentar o processo de desestatização. A palavra tem peso, portanto devemos dar uma resposta objetiva, devemos reestatizar os serviços públicos do nosso estado com o equilíbrio de retomar também os conselhos de direitos. Enfrentar a questão das organizações sociais na saúde, fortalecer conselhos de saúde que incidam sobre as gestões como primeiro passo, apoiar as prefeituras a assumir sob controle do SUS as falidas Santas Casas, descentralizar e regionalizar e permitir o máximo de transparência nos investimentos através do controle social.

Fortalecer a Sabesp e enterrar de vez a sua privatização e retomar o controle das águas do estado em parceria verdadeira com os municípios. Aplicar e investir em serviços regionais de Assistência Social que nunca foi feito pelo SUAS em São Paulo. Retomar o controle das rodovias assumindo o controle sobre as concessionárias e progressivamente restabelecendo o direito de ir e vir da população.

Estas não são os únicos desafios para o nosso estado. Mas são necessários e urgentes.

E para além das eleições está colocado o desafio para o partido: restabelecer em seu projeto político de poder a centralidade da militância, que não pode ser tratada como cabo eleitoral, mas agente da mudança e da transformação.

Isso exige não cairmos em contradições como defender direitos humanos e ter guardas municipais extremamente violentos no trato com as populações periféricas, estas contradições são inexplicáveis aos olhos e gestos da militância petista que luta pela igualdade racial, por exemplo.

Gestos e atitudes são fundamentais para o momento. Para caminharmos para além das eleições!