sábado, 18 de abril de 2020

Crise de Saúde (Covid 19) e a solidariedade da emergência.

Contrariando orientações da OMS, apoiadores de Bolsonaro protestam ...
foto: reprodução/ Twitter

A segunda década do século XXI está marcada pela pandemia que marcará a história humana numa que será uma das conjunturas mais complexas que existiu. Antes da pandemia do Covid 19 (coronavírus) nós já nos encontrávamos no período do pico do neoliberalismo em sua fase mais agressiva, sob domínio da ditadura do capital financeiro global, ascensão política do "neo" fascismo que emerge a partir da vitória de Trump nos EUA e agora tudo indica que sua direção ideológica tem atuado como um tipo de uma "internacional do conservadorismo e do ultraliberalismo" com experiências exitosas em vários países, inclusive o Brexit, e o Brasil que entrou para o rol desse novo campo de força política que emerge das trevas. 

Essa "nova" força política reivindica o dinamismo do mercado e reação contra o  "liberalismo" com suas permissividades a questões raciais, de genêro e suas diversidades, exigem para si a velha narrativa da moral e dos bons costumes, aliando-se as novas formas de relações sociais por meio das tecnologias (celulares, Iphones, e outros) e não só isso, mas também o uso dos dados para os seus interesses políticos, atuando como um "partido de vanguarda" estruturado e com estratégia de poder.

Tragicamente, é um tipo de reprodução do internacionalismo do movimento comunista que teve ação vigorosa no final do século XIX e no século XX.

O que vivemos internacionalmente, no campo de forças da esquerda, mudanças devido a diversas questões globais que vai desde a capitulação da social democracia europeia em adesão e implantação do projeto neoliberal nas décadas de 1980-90, o levante do zapatismo no México, surgimento do Fórum Social Mundial (FSM), sucessivas crises do capital que leva a vitória dos governos de esquerda na América Latina, crises na União Europeia que gerou uma nova onda xenofóbica evidenciada pela situação dos povos imigrantes e vagantes pelo seu direito a sobrevivência, o "Brexit" com a saída do Reino Unido da União Europeia e novo processo de descenso político institucional da esquerda, em especial na América Latina por meio de golpes institucionais. Isso tudo nas duas décadas do século XXI

Nesse cenário, 2020 se inicia com sinais de fumaça e que se alastrou como um grande incêndio gerando a crise de saúde pelo Covid 19 (coronavírus) em escala global e gerou a maior crise da humanidade e humanitária internacionalmente, onde nesse exato momento (18/04/20) chegando a 
Confirmados
2.293.644
Recuperados
583.783
Mortes
157.400
(fonte OMS)

E mesmo diante desse cenário, politicamente essa "internacional do neo conservadorismo e do ultraliberalismo" manteve sua luta política, combatendo as propostas de isolamento social, atuando contrária às posições hegemônicas do campo científico e seguindo na sua estratégia de fazer avançar o campo do protofascismo ao manter vivo no seu discurso a alegação que a crise de saúde é uma tentativa de "golpe pela esquerda" contra Bolsonaro no Brasil.

A crise de saúde tem levantado o tema da solidariedade. Contudo, uma solidariedade muito específica no campo do pensamento liberal, ou seja, uma "solidariedade da emergência", que advém da ideia neoliberal da "doação ou ajuda" que deveria partir de setores da sociedade civil, um tipo de auto responsabilização dos indivíduos (Montano, 2010 p.168) que se apoia na lógica da privatização do Estado, redução da sua intervenção para manter o orçamento público para o financiamento do setor financeiro e do mercado e tratando as expressões da questão social no capitalismo como um problema exclusivo de uma "sociedade civil" na sua forma "colaborativa".

Essa solidariedade da emergência, nesse momento, opera sobre a visão mesquinha de "luta pela sobrevivência" dos indivíduos,  pois o que tem sido o centro desse "voluntarismo" todo é mais no sentido da busca pela proteção de si próprio e não necessariamente pensando nos outros (na coletividade), serve mais como um mecanismo básico de sobrevivência humana. E isso ocorre justamente porque parte da massa trabalhadora que emerge no cenário dessa conjuntura, conforme analisa Antunes da Unicamp e outros pensadores brasileiros, é justamente a fragmentação e a pulverização da classe trabalhadora, desempregada estruturalmente e empurrada à desproteção social no Brasil e no mundo. 

A crise de saúde fez tornar transparente e evidente a situação da grande massa desempregada excluída do mercado formal de trabalho, mas trabalhando no setor informal, terceirizado, diarista em todas as áreas de serviço e até da produção, precarizado e totalmente desprotegido socialmente. Onde a urgência da burguesia brasileira está centrada na contenção dos levantes da classe, e menos do problema da crise de saúde do Covid 19.

A pressa em aprovar medidas de auxílio vem mais da emergência de classe e preservação do seu poder do que da emergência humanitária.

As iniciativas "solidárias" tem sido desenvolvidas de forma diferente entre as várias frações da classe trabalhadora. Onde observamos que parte da classe assalariada média no alto dos seus condomínios têm protagonizado as "iniciativas das janelas", entre outras, enquanto nas periferias temos aquelas onde há uma organização comunitária efetiva estão mais preparadas para reagir e onde as periferias são marcadas pela desorganização, se encontram dispersas e sem apoio efetivo.

Nesse quadro o "perigo" está no efeito "panela de pressão", que pode fazer com que o desespero gere levantes populares dessas frações da classe, mais vulneráveis exigindo respostas frente a situação de pandemia/ crise de saúde pública.

O cenário não é favorável para uma revolta progressista e na disputa política geral quem sai na frente promovendo esse "levante" é a fração política bolsonarista entre os assalariados e pequenos burgueses, seguindo a direção do seu "chefe" na defesa da narrativa da pauta econômica contra as ações de isolamento social, buscando disputar essa narrativa no seio da sociedade brasileira.

No campo da esquerda a dispersão e parte da letargia sobre os fatos tem sido algo evidente, seja nas ações de enfrentamento a crise de saúde ou reagente apenas aos movimentos do bolsonarismo ou das frações burguesas que sustentam o governo. 

É preciso admitir que pela esquerda houve um atraso de reação nesse momento, em especial em articulação com as periferias e a classe trabalhadora em geral, principalmente em não criar um arco de defesa prévia para suas bases para poder avançar na população em geral.

Suas ações fragmentadas e dispersas, baixa capacidade de incidir sobre o debate político institucional, com a direita ocupando governos municipais, estaduais e a União desde a derrota político eleitoral do PT desde o golpe de 2016 e o distanciamento das organizações em resposta à questão social brasileira são elementos que estão presente em nossa realidade política.

A questão da solidariedade de classe deveria (e deve) se tornar um valor central e permanente, em particular, em tempos de guerra político ideológica contra o "neo" fascismo.

Foi a solidariedade de classe que constituiu a liga que promove os primeiros levantes operários da classe trabalhadora no Brasil, nos movimentos anarco sindicais, nas iniciativas dos círculos operários em apoio a dimensão das relações sociais do operariado, enfim, a versão do "nós por nós" é parte forte dos valores de luta da classe trabalhadora brasileira. Tanto que a ditadura do Estado Novo de Vargas foi implacável contra isso, inclusive, onde as instituições do Estado agiram sobre a dimensão da formação até ao esporte e lazer se observarmos o papel que cumpre o sistema "S" com o Senai, Sesc, entre outros, o disciplinamento das organizações sindicais pela lei trabalhista (CLT), ou seja, formas articuladas de capitular a partir do cotidiano da classe trabalhadora como meio de desestabilizar suas organizações.

Em contrapartida temos também nas décadas de 1970 e 1980 os levantes da classe trabalhadora fazendo surgir o "Fundo de Greve" como instrumento coletivo de apoio solidário aos trabalhadores demitidos durante as greves, os "clube de mães" e o movimento por direito a creches, enfim, historicamente a classe trabalhadora brasileira tem tradição em iniciativas valorativas da solidariedade de classe.

E no momento atual? O que houve no campo das esquerdas com relação ao valor da solidariedade de classe?

É importante ressaltar que a burguesia nunca abandonou sua estratégia de intervenção e desmonte das ações e valores da esquerda, como vimos historicamente, havendo uma capitulação da solidariedade pela ideologia neoliberal com protagonismo das organizações sociais, ONG's e frações da sociedade civil. E parte do descolamento da esquerda brasileira, seja pela transferência dessa inclusão social e entrega de suas ações de solidariedade de classe para estas frações da "sociedade civil", seja pela mudança da sua estratégia para o campo da luta político institucional.

Sobre essa "entrega" da perspectiva da solidariedade de classe pela esquerda (ou pela sua fração majoritária) é importante compreender que parte do projeto de disputa do Estado e da sociedade se alterou gravemente no último período histórico devido ao rápido entendimento de parte da esquerda brasileira pela conciliação de classes ou pelo conformismo político institucional travestido sobre o discurso acusatório de "assistencialismo". 

O que houve de forma efetiva pela esquerda em estabelecer a solidariedade de classe foi o processo que promove o Fórum Social Mundial (FSM). Que busca convergir estratégias para conciliar posições anticapitalistas e anti neoliberais, retomada da perspectiva solidária, comum e humanista., porém, sem unidade efetiva isso continuou fragmentada no decorrer do processo, mas pelo menos furou a bolha da concepção acusatória do "assistencialismo" através a ampliação de iniciativas como os cursinhos comunitários populares, bibliotecas populares, do movimento camponês, da economia solidária entre outras, que se mantiveram ainda dispersas. nas iniciativas da esquerda.

O abandono de ações e dos valores da solidariedade de classe dentro de uma estratégia de disputa pelo poder pela esquerda brasileira demonstra, nesse exato momento da história, a fragilidade das nossas redes de apoio e de ação militante.

A fragmentação no âmbito da classe trabalhadora quanto a sua efetiva solidariedade mostra a necessidade de uma real autocrítica da esquerda brasileira e não apenas desta ou daquela organização partidária, sindical ou popular. A ausência de uma ação coordenada, plural, articulada e ramificada nos lugares onde atuamos é parte dessa derrota nesse momento. Nossa resposta, partindo de nossas bases já exerceria forte peso no diálogo e ação junto as massas desacreditadas com a política profissional, além de mostrar nossa capacidade de incidir sobre uma realidade concreta. A solidariedade como práxis da sua classe, nós por nós mesmos.

Esse debate é importante em duas dimensões: a da nossa organização, necessária para resistir a exploração e opressão de toda ordem, nesse caso contra a ordem do capital; na outra a de valores humanos, onde a solidariedade para nós socialistas e comunistas não reside no momento, mas efetivamente intervindo na vida social cotidiana da classe trabalhadora.

Porém nesse exato momento histórico, não estamos exercendo nem na primeira e nem na segunda dimensão.

E essa crítica é necessária agora? Considero que sim. Já que quem se aproveita desse momento de crise de saúde é a própria burguesia e suas representações políticas nos três poderes estende seu oportunismo politico, econômico e social onde segue as reformas neoliberais com a ampliação da reforma trabalhista e da vergonhosa "carteira verde amarelo" que impõe perdas salariais, inverte a luta pela redução da jornada a uma condição de rebaixamento de direitos, oferece acesso ao auxílio emergencial para setores médios da pequena burguesia proletária (micro empreendedores, emprecariados diversos e outros) e dificultando os demais, em especial os mais vulneráveis da classe trabalhadora que estão presos/as no limbo da precarização do trabalho, desempregados empregados sem proteção social alguma.

Pois nada indica que depois da pandemia haverá a continuidade dessa solidariedade, já que o seu limite está estabelecido já pelo "cada um por si", onde a "solidariedade com o outro é pela sua própria sobrevivência", e não há gesto tão mesquinho que esse. Isso revela no espelho da alma humana esses indivíduos que se converteram a gentileza do atraso e a humanidade desumana.

Pode ser que ainda haja tempo de constituir em nossa análise crítica interna, em particular nas organizações que reivindicam a classe ainda como centro da luta, resistência e revolução, repito, das organizações que se reconhecem pertencentes a luta de classes, uma perspectiva que faça da solidariedade de classe parte do eixo estratégico da luta, dos valores e da práxis militante.

Mas onde se auto excluem as organizações partidárias, sindicais e sociais que alegam "fugir do debate ideológico" do "assistencialismo" e que se escondem na caverna fétida dessa "sociedade civil" (servil) e seguem mentindo para si e para classe, sob uma estratégia de um aliancismo medíocre que não organiza e não liberta ninguém.  

Hora de retomar a relação com a nossa classe, atualmente dispersa e fragmentada, mas atenta aos movimentos das forças. As massas, apesar de não estarem apoiadas em condições político culturais para ampliar pela reflexão crítica para buscar meios e formas de se libertar, pode sim ter na retomada de nossos movimentos em direção à solidariedade de classe, combinada com estudo e a luta efetivamente cultural formar opinião, reflexão e posição. Constituir redes de apoio, atuação e disposição para dar respostas a momentos como esse e sair ainda mais grande politicamente pode e deve ser o centro da nossa práxis.

Ainda há na esquerda uma práxis calcada na solidariedade de classe, a tempos tenho defendido que nas experiências contra hegemônicas que vão da Comuna de Paris ao Quilombo dos Palmares, passando pelos Panteras Negras e indo ao MST, que construir nossa auto organização, contrariando o Estado burguês, criando novas sociabilidades locais e fazendo com que essa "fantasma" da emancipação humana seja de fato uma assombração real pelas periferias pode ser um caminho agora inevitável, pelo qual dizia Milton Santos, onde a resistência viria (e virá) das periferias organizadas e como demostrou Marielle. Que é possível construir uma outra saída e alternativa à ordem do capital,  sem polícia e nem milícia de direita.

Construir Quilombos urbanos de fato. Sabendo que não será uma luta individual e nem fácil, pois Marielle foi vítima da sua própria estratégia e não teve tempo para ecoar nos ouvidos da esquerda brasileira que o caminho não é o abandono, mas o abraço à uma solidariedade de classe efetiva.

à luta camaradas, não temos tempo a perder
à luta camaradas, não temos nada a perder