segunda-feira, 20 de março de 2023

"Quando uma Universidade Morre"

Fonte: imagem do Google


É possível uma universidade "morrer"? Não estamos falando do seu prédio físico, mas do elemento humano que da vida a simbologia, função social e existência de um lugar, mesmo que de concreto e aço, possa "ganhar vida". Longe de querer argumentar sobre a humanização das coisas, como bem Marx soube nos apresentar. 

Uma noite dessas de verão, quando a luz natural compete com a luz artificial, a imagem daquele prédio imponente da UNG (Universidade de Guarulhos) fez refletir sobre aquela forma geométrica que decora as janelas e que me fizeram lembrar do seu significado. Pensado justamente para ser o símbolo que a própria instituição ostentava, destaca de forma única esse prédio dos demais vizinhos a ele. 

Nem mesmo o crescimento ao redor de novos edifícios tira o destaque que o prédio da Universidade dá no horizonte. Essa reflexão não vem com nostalgia, mas vem com uma dor e tristeza. A UNG é uma instituição privada de ensino superior, ponto! 

Porém, ela nasce num momento da história em que a busca pela excelência acadêmica geravam disputas interessantes no setor. Uma delas é a busca do setor privado de ensino buscar se equiparar ao setor público. Portanto, buscar excelência era buscar docentes, era desenvolver pesquisa, ter laboratórios, competir, se necessário, para superar o setor público. 

 O campus deveria ter, pelo menos, a imagem de um lugar tão igual ou parecido ao campus de uma USP, Unesp ou Universidades federais de ponta. Com uma diferença fundamental: era para dar lucro. E mesmo assim, o tempo que fez a UNG ter a chancela de universidade era a mesma que qualquer uma do setor público e podendo disputar a fatia dos investimentos em pesquisa como tal. 

Outros tempos. Não queremos dizer que o passado era bom. Tinha seus erros, grandes erros. Mas, mesmo assim sua comunidade acadêmica gozava dos mesmos benefícios e responsabilidades acadêmicas que uma universidade deve exigir. 

Algo mudou na segunda década do século XXI, o capitalismo avança para sua evolução financeira e financista, fim dos capitalismos nacionais, da empresa familiar, enfim, a lógica da exploração reúne novos instrumentos que se somam aos tradicionais. A máquina que moer carne, agora seduz e explora sutil e ferozmente. 

A UNG pela legislação ainda é uma universidade, ainda deve seguir o tripé "ensino, pesquisa e extensão" e alguns ritos acadêmicos são realizados, como as colações de grau. Voltando a morte possível da universidade. Cada luz de uma sala de aula que se apaga é a falência desse "prédio" que só tem vida pela intensa relação entre estudantes, professores e funcionários que se trombam freneticamente nos corredores. É a morte de sonhos. 

Quando comecei a lecionar em 2014, tudo era desafiador. Preparar a aula, não vacilar, realizar bons debates e estudos, não poderíamos ter menos que doze horas-aulas, atividades acadêmicas, defesas de TCC's, exposição de painéis com os projetos de pesquisa, semanas acadêmicas, enfim, tudo era intenso. 

Mas, como todo negócio no capitalismo a UNG não era diferente, foi do mercado acadêmico para o mercado de ações. Entrou na "era moderna" da financeirização do capital, virou um ativo e a comunidade acadêmica virou o passivo da relação. Novas lógicas, novas palavras e velhas práticas. Perda de renda, perda de horas, perda, perda, e perda. 

Sabemos que a erosão da UNG não é apenas dos donos ou sua lógica de "gerenciar essa negócio", temos mudanças na conjuntura econômica, social e política, em tempos de crise econômica o corte de gastos das famílias é certo, e a formação acadêmica sai da lista de prioridades. A queda do financiamento público como FIES e PROUNI impactam. O avanço de uma cultura do "cada um por si" chamada de empreendedorismo, leva a falsa ideia dos cursos rápidos, a distância e baratos. Somado a um Estado que suspendeu e abandonou a ideia de planejamento em 1964. 

A ditadura civil-militar abortou sonhos da geração das décadas de 1940, 1950 e começo de 1960. Celso Furtado, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Maria da Conceição Tavares, Nise da Silveira, Josué de Castro, enfim, os pensadores brasileiros, foram banidos, silenciados, cassados ou assassinados, uma geração que tinha um sonho de Brasil foi sendo impedida de realizar. 

No ensino superior não foi diferente. Sonho e realidade não fecham a conta. Entre se formar na Universidade e exercer a profissão existe um abismo, o abismo do "cada um por si da porta pra fora". Mesmo o básico do "mantra do capitalismo" sobre diploma e mercado de trabalho são na verdade mentiras, já que a demanda do mercado educacional não precisa estar em sintonia com as necessidades do país. 

Exemplos não faltam desde o número excessivo de alguns cursos até déficit de especialistas em algumas áreas, já que "fazer dinheiro" se sobrepõe ao "exercer a profissão" para conciliar trabalho e sua função social ao interesse coletivo. Esse mal se estende ao setor público de ensino, com a diferença na questão da pesquisa e da extensão, que o setor privado nem valoriza, nem quer investir. 

Dito tudo isso, imaginemos que a UNG não é a única que "está morrendo", os fatos falam por si e mundo corporativo do capitalismo no setor educacional por onde passa deixa um rastro de destruição. 

Porém, para quem fica, vive e resiste o seu lugar é a sua referência. Falei em tristeza no começo desse artigo, triste não pelo prédio e mesmo sabendo que a instituição é privada, ficamos tristes pela inércia atual, pela negligência, já que o "ativo" mais importante da instituição e que segundo seus alunos é o elemento que os prende a ela, o (a) professor (a) segue sendo desvalorizado. 

Assistir a morte de um lugar que poderia pulsar vida ainda é terrível. Nele, ainda estão as memórias e o dever de terminar de cabeça erguida e com dignidade. Triste também pelos que por uma ilusão estúpida acham que serão salvos pela sua excelência acadêmica. 

Não quero desanimar ninguém, mas a o tempo dessa excelência no setor privado está com dias contados. Poderíamos cair na contradição da busca por alunos (as), sim. Justamente por essa maldita alma que carrega a docência. 

As vezes ajudamos indiretamente nossos opressores, em nome dos oprimidos (nós mesmos e os alunos). Tamanha o peso do valor que damos a esse trabalho. 

Aqui termino, não conformado, porém ainda triste. Ver corredores cheios de vida, luzes acessas e intensidade daquela massa de gente, de ideias, sonhos, opiniões, enfim, é a alma desse lugar. A possível morte da UNG só me deixa com uma certeza, nos escombros pode sempre brotar algo. 

Que seja pública e que seja de interesse de toda sociedade.