Em que beco estamos? Confesso que assisti "Coringa - Delírio a dois" com grande preconceito, não fui ao cinema assim que me disseram que era um musical. Não gosto de musicais, enfim, gosto é gosto. Prefiro boas histórias com enredo, tramas e tudo mais. Musicais, veja bem, ficam presos nessa coisa alegórica, cantoria, o show...talvez "Chicago" com Renée Kathleen Zellweger.
Bom, vamos ao que interessa. Tirando a cantoria, o filme me surpreendeu, pois joga luz a questão que foi o estopim do primeiro, a vida social dos indivíduos, numa sociedade marcada pelo capitalismo financeiro, numa cidade afogada no marasmo da rotina determinada por um vazio existencial, ricos sendo ricos, fodidos sendo fodidos, passividade do fim dos serviços públicos e indiferença geral.
Coringa 1, estabeleceu desse debate do anti-herói que, em sequencia, reage ao abuso dos três imbecis no metrô, vamos lembrar a cena, os três "investidores" de família formada por "cidadãos de bem" assediam uma moça no vagão onde estava o desempregado Arthur Fleck, ele nem foi tão altruísta assim, sua risada de nervoso apenas mudou o foco dos três imbecis para ele mesmo. Diante da agressão destes, a reação, tiro pra todo lado, a força humana irracional em se defender. Não justifica? Bem, eu diria que não, como também não justificaria ele apanhar de três imbecis, isso vira um bom debate ético não é?
Sobre a degola do "colega" de trabalho, voltemos para trás, quem deu a arma de fogo para o indefeso Arthur Fleck? O "colega", que a principio queira vender a arma. Depois de perceber que a mesma foi usada no atentado aos três imbecis, ficou com medo, tentou de tudo para reaver o revolver. Mereceu morrer? Acho que não! Agora, Arthur podia ter rejeitado o artefato, com certeza. Vejam como a sequencia de merda acontece.
Matar a mãe. Outro ponto de virada, já que descobriu ou rememorou fatos do seu passado, da infância e das mentiras da mãe, já idosa. Outro gatilho, daqueles que vai criando o "Coringa" na alma.
O tiro no meio da cara do apresentador Murray Franklin, precisava? Olha, esteticamente (falando de filme) adorei, tanto quanto a morte do Wayne. mas voltando o social da coisa, vamos lembrar que o objetivo do Arthur era se matar em público, contudo, outro sentimento desencadeou, chamemos de indignação numa variação de alto nível. Sim, adrenalina nas alturas. Lá nasce o Coringa? Eu achava que sim, até assistir "Delírio a dois"
Lá temos uma pessoa, Arthur Fleck, domesticado pela medicação, sem a euforia e os gatilhos que desencadearam a fúria anterior. O argumento da advogada de defesa sobre as "duas personalidades" até poderia ser um bom argumento legal, mas de fato pelo andar da carruagem, não era verdade.
Talvez o "Coringa" em nós esteja por outras vias e não duplas, triplas ou múltiplas personalidades. Nós associamos indignação como um ato político, quando na verdade não é sempre. Aas vezes é um impulso individual, algo que pisou no nosso calo, o não reconhecimento, a indiferença dos demais por nós, enfim, só é ato político se é coletivo.
Novamente talvez, o que o "Coringa" em Arthur Fleck tenha causado na massa tenha sido uma indignação coletiva, já Arthur não, foi mais impulso individual. Ele nunca quis defende ruma causa, e sempre deixou isso bem explicado, várias vezes.
Mas a provocação da sua admiradora Harley Quinn, engraçado tentaram fazer um trocadilho com "Arlequina", foi sendo assedio puro, pois, ela tinha na sua cabeça de que existia "Coringa", e nunca considerou Arthur Fleck, ela sempre o chama por "Coringa". E isso dá o gatilho que Arthur (não precisava) para aos poucos buscar ser aquele indignado que mais tentava ser o "astro da comedia" do que uma simbologia das massas. Outra incoerência, já que Harley queria o "Coringa" das massas e Arthur queria o astro do palco, tanto que os delírios, talvez por isso a cantoria, sempre foi ele representando no palco, como apresentador, cantor...e não um líder de ideais. Contradição danada né.
A contradição que eu considero mais canalha é aquela do inicio, dos três imbecis no metrô, em nenhum momento, a moça branca assediada pelo menos tem dignidade de dizer em algum lugar que seja de que se não fosse a intervenção involuntária de Arthur Fleck, ela poderia ter sido inclusive estuprada. Nada. Não aparece nada. Isso diz muito sobre a tal a empatia, esse sentimento mentiroso, ligado apenas ao que interessa no intimo do umbigo de quem faz querendo cartaz, likes ou qualquer outro reconhecimento de merda dessa sociedade doente.
O desfecho é o mais significativo. Começa na última argumentação do tribunal, quando ele novamente volta ao chão da realidade e decide que quem vai falar é a única pessoa que de fato existe, Arthur Fleck. Gerando frustração dos admiradores, com a saída de Harley e várias pessoas do tribunal.
Confesso que quando rolou o final fiquei chateado, achei uma bosta. Mas depois de um tempo refletindo, cheguei nestas conclusões, e no final um dos detentos que também depositou confiança no "Coringa" também entrou na fila dos frustrados e encerrou com o golpe a facadas no estomago do real e único Arthur Fleck.
Vamos lá. O filme não é sobre o "vilão" de Batman, é sobre a existência humana. Ou a falta dessa existência para nós, para nós todos, ricos, pobres, fodidos, trabalhadores, polícia, todo mundo em pânico!
Como esse atual sistema capitalista tem conduzido a ausência da nossa existência.
Sim, por incrível que pareça, o filme superou minhas expectativas e como sempre jogou pra baixo, num grande lago de merda, as expectativas com o ser social do capitalismo.
Assistam, vale a pena!