Democracia, o item que falta na
cesta básica do brasileiro (a).
Wagner Hsokawa
Na adolescência depois de
participar do Grêmio Estudantil na escola e participar de manifestações em
defesa da educação pública, nas horas descontraídas numa roda de colegas muitos
de nós na década de 1990 imaginou “como seria a militância política em 1964?”,
e com o olhar nostálgico da história, imaginávamos que seria mais “animado”
enfrentar uma ditadura real do que a do mercado neoliberal.
Abril de 2016 prova que estávamos
errados. Devemos enquanto sujeitos históricos viver o nosso momento, e de fato
vivenciar o clímax de um movimento golpista não tem nada de “animado”. Cada
qual tem a sua versão sobre a conjuntura política, mas o certo é que não se
compara a canalhice de 1964 e nem a corrupção do governo Collor em 1992, as
motivações e a situação política são outras, suficientes para refletirmos no
que deu de errado na transição democrática.
Vamos aos fatos e a articulação
política pós década de setenta. Avaliando pelo lado das forças de oposição à
ditadura civil-militar fomos derrotados na transição democrática duas vezes,
primeiro na votação do projeto das diretas, a emenda Dante de Oliveira que
enterraria as restrições eleitorais não passou no Congresso golpista e
recalcado dos militares.
E a eleição indireta de Tancredo,
que por mais que a narrativa da burguesia seja de “tristeza” pela morte do conciliador
mineiro, representou a velha forma de manutenção de poder das elites
brasileiras, que preferem conciliar a ter que fazer concessões. Vamos lembrar
que a “chapa” Tancredo, do MDB (que depois seria o PMDB conhecido), foi
articulada com os setores desgarrados da ditadura e já preparados para
continuar no poder no fim da festa do governo dos “milicos” representados
por...José Sarney, da ARENA (partido criado pela ditadura civil-militar para
representar seu bloco político institucional), o resto da história já
conhecemos.
Morte de Tancredo e o governo de
Sarney é uma nova conciliação das forças burguesas “por cima”, onde a
democracia foi sendo reestabelecida pelos mesmos representantes políticos e
suas crias desde 1964 (ou até mesmo de antes), a julgar pela partilha de poder
em áreas estratégicas como a comunicação e o aparelhamento do Estado.
Contudo as forças políticas
emergentes e o reascenso das lutas populares que incomodaram no final da década
de setenta com a retomada das lutas operárias, a insatisfação com a crise
econômica da ditadura e sua gradual deslegitimação política, conselhos e fóruns
populares, enfim, acumularam resistência necessária para promover parte da
constituinte de 1988 e mesmo diante das conquistas jurídico-legais, o eterno
professor Florestan Fernandes em um de seus artigos, avaliando os trabalhos da
Assembleia Nacional Constituinte (ANC), nos afirma,
“Nela (a ANC) não houve sequer
solo histórico suficientemente arejado e tolerante para permitir o aparecimento
de propostas abertamente socialistas ou pelo menos de “melhorismo”
social-democrático, de “reforma capitalista do capitalismo”. A hegemonia das
classes dominantes sufocou os partidos da ordem, secou a voz dos políticos
profissionais autenticamente radical-burgueses e segregou a esquerda ao gueto,
forçando-a a contentar-se com alguns “avanços democráticos”. (Fernandes, 1987)
Fernandes também destaca que a
criação do “centrão” no Congresso foi “regado” a velha forma da distribuição de
cargos para que o governo Sarney “vencesse” a constituinte na defesa dos
acordos políticos pela manutenção de privilégios de instituições privadas e de
poder.
O neoliberalismo tardio da década
de 1990 e o “new deal” ao inverso para as elites via Plano Real implantado
pelos governos FHC deram nova narrativa as elites que condenavam a “inviabilidade”
das legislações sociais, seus custos e por extensão as amargas reformas de
Estado que combinavam menos intervenção e mais privatização, o cenário da jovem
democracia brasileira estava fadado mais a legitimidade da ordem social
capitalista e menos da participação política.
Um parêntese antes de avançar
mais. A sociedade civil pós 1980 se desenvolve numa perspectiva criativa e de
mobilização, cidadania é a palavra da moda, sem unidade num programa político comum
seguem vários caminhos, mas um em particular nos dá uma chave para entender a
urgente compreensão da práxis democrática na sociedade brasileira.
Herbert de Souza, sociólogo,
terceiro dos três irmãos Henfil e Chico Mario, militante e exilado político,
empreendeu na redemocratização lutas que foram da reforma agrária (1981) à
campanha “Ação da Cidadania contra a Fome” (1993), mas o elemento central era o
fortalecimento de uma nova sociedade civil munida do acúmulo de forças progressistas
e democráticas (campo em que a esquerda também se inscrevia) e nos deixou das
suas contribuições uma reflexão,
“Um cidadão não pode dormir com
um sol deste: milhares de crianças trabalhando em condições de escravidão,
trabalhadores sobrevivendo com suas famílias num quadro de miséria e de fome, a
exploração da mulher, a discriminação do negro, uma elite rica esbanjando
indiferença num mundo de festas e desperdícios escandalosos, de banqueiros
metendo a mão no dinheiro do depositante, da polícia batendo em preto e pobre. (...)
Cidadania é, portanto, a condição da democracia. O poder democrático é aquele
que tem gestão, controle, mas não tem domínio nem subordinação, não tem
superioridade nem inferioridade. Uma sociedade democrática é uma relação entre
cidadãos e cidadãs. É aquela que se constrói da sociedade para o Estado, de
baixo para cima, que estimula e se fundamenta na autonomia, independência,
diversidade de pontos de vista e, sobretudo, na ética – conjunto de valores
ligados à defesa da vida e ao modo como as pessoas se relacionam, respeitando
as diferenças, mas defendendo a igualdade de acesso aos bens coletivos.”
(Betinho, 1995) (grifo do autor)
Termino neste ponto, porque a
próxima fase do “alimento” pelo qual Betinho, Florestan e outros lutadores e
lutadoras para saciar a “fome” objetiva da sociedade brasileira, e
principalmente das classes subalternas e trabalhadoras: a democracia como meio
e fim.
Retornando a abril de 2016 e o movimento
das elites insatisfeitas com o pouco “reformismo social” dos governos do PT,
alguns elementos evidenciam os processos inconclusos de uma nova sociedade
civil brasileira que compreende o seu passado, movimenta-se para ter respostas
no presente e busca construir o seu futuro, isso numa dinâmica de uma práxis democrática
operada primeiro na redução drástica da concentração de riquezas e de capital,
diminuindo as distâncias socioeconômicas e eventualmente constituindo-se numa
nova força política que alterasse a correlação no âmbito do Estado.
Bom, os sinais evidenciam que
esse caminhar ainda está por vir. A sociedade política, trincheira última do
golpe, mostrou que a conciliação de classes do petismo nunca operou como um
bloco de poder, e sim, alianças de conveniência, visto que a votação do
relatório pela admissibilidade do impeachment da presidenta Dilma foi na tarde
de 17 de abril a pior exibição de horrores já vista e televisionada.
A república envergonhada mostrou
sua face: uma sociedade civil com uma fração da classe assalariada média
autoritária, ignorante e buscando privilégios em vez de direitos, e uma
sociedade política majoritariamente controlada pela burguesia e seus
representantes subservientes e oportunistas eleitorais fincados na moral
burguesa (uso das religiões, homofobia, machismo, autoritarismo, etc.), e as
tensões das manifestações de 2015 mostram que velhas narrativas não morreram
com a redemocratização inconclusa.
É certo que os tempos são difíceis.
O afastamento da presidenta Dilma cessou o discurso das elites da comunicação,
da crise a corrupção, ambas voltaram a ser palavras cautelosas diante dos seus “legítimos”
representantes do governo golpista de Temer. As elites capitalizaram em 2015 o
que pouco conheciam em 2013 e que tentaram obter via eleitoral em 2014 e
acionaram os seus instrumentos usuais no Estado (via Poder Judiciário/ juiz
Moro e na Polícia Federal) e na sociedade civil (via organizações como FIESP e
OAB), criando um clima que pudesse ser utilizado para dar o start na sociedade
política para o desfecho de abril de 2016.
Porém, antes disso vamos
estabelecer os nexos necessários. Se o lado de lá, a burguesia, as elites e
suas forças auxiliares empreenderam esforços, já tinham uma narrativa
discursiva (o combate a corrupção), criaram os meios para
"legalidade" do processo do impeachment (impedimento da presidenta
por crime de responsabilidade/ "pedaladas fiscais") e torceram para
que o pavio institucional se ascendesse no Congresso, este "esquema
tático" por si só é uma tentativa de golpe (seja ele branco, institucional
ou o nome que o valha), um golpe tem traços ideopolíticos.
Porque a "raiva das
elites" não era necessariamente contra a corrupção de grupos dirigentes do
PT via aparelhamento do Estado ou de desvio de verbas públicas, mas
centralmente contra a partilha de parte do Estado para os "sujos, feios e
malvados" representados pelas classes subalternas e os trabalhadores (as).
Mesmo o intelectual Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES da gestão Lula e crítico
ao neodesenvolvimentismo "lulista" deixou evidente em depoimento ao
documentário "Um sonho intenso", que o legado dos governos do PT era
a valorização do salário mínimo, que foi um "tapa na cara" dos
neoliberais que sempre defenderam os ajustes econômicos com crescimento gradual
mantendo em sacrifício a classe trabalhadora, e afirma que ao condicionar
crescimento econômico e aumento salarial isso derruba as teses neoliberais e
afirma uma solidariedade econômica no modelo econômico.
Noves fora, o centro da questão
para a esquerda brasileira fora do arco de alianças do petismo não está na
corrupção, não porque não seja importante, mas porque é endógena ao projeto
político tático-estratégico escolhido pela direção do PT: conciliação de
classes, reformas sociais, partilha do fundo público via credito e financiamento
(empresários e trabalhadores) e o "bem estar tardio" com capitalismo
neoliberal. Funcionou até o momento em que a tolerância das elites tornou-se em
insatisfação na sua quarta derrota eleitoral desde 2002, ou seja, retomar o
Estado era ponto de honra.
Se perdemos ou não uma
oportunidade de criar uma nova sociedade civil isso o movimento da história vai
nos dizer na medida que as conquistas sociais do governo do PT forem
gradualmente sendo desfiguradas, desmontadas ou desestabilizadas caso não haja
resistência e luta. Até o atual momento as forças populares mostram que não
ficarão de joelhos.
Além do acumulo de forças no
interior da sociedade brasileira pela inclusão de jovens na universidade ou de famílias
que saíram da intranquilidade financeira pelo Bolsa Família, acesso a crédito e
ao fundo público, ou que saíram do aluguel pelo Minha Casa, Minha Vida, além
das legislações sociais conquistadas (lei maria da penha, SUAS, etc.), onde o
processo gerador de uma nova práxis democrática não foi ainda consolidada.
Mas uma coisa é certa, resgatando
a afirmação de Rosa Luxemburgo: “se para a burguesia a democracia tornou-se
supérflua ou mesmo incômoda, é ao contrário, necessária e indispensável à
classe operária”, ou seja, não escolhemos criar a ruptura com a ordem, mesmo
que burguesa da democracia, agora aguentem!