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Por: Patricia Fachin e Ricardo Machado | 04 Janeiro 2017
Além da tributação indireta sobre o consumo e a produção
de bens e serviços, a tributação direta via Imposto de Renda também pode
ser considerada “mais um elemento de concentração de riqueza na
sociedade”, diz Evilásio Salvador à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Recentemente, Evilásio Salvador coordenou um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc,
que se propôs a analisar os dados do Imposto de Renda de 2007 a 2013,
divulgados pela Receita Federal. Entre as conclusões do estudo, o
professor pontua que os declarantes do Imposto de Renda com rendimentos
acima de 40 salários mínimos “têm, se verificarmos os ativos e os bens,
42% do total de bens informados à Receita”, enquanto os hiper-ricos,
aqueles que recebem acima de 160 salários mínimos, possuem “21,70% do
patrimônio informado na declaração de Imposto de Renda”.
Na avaliação de Salvador, o Sistema Tributário “não é simplesmente
injusto porque tem uma tributação forte indireta, ele também é injusto
porque não tributa renda e patrimônio de maneira adequada, e mesmo
quando tem a tributação sobre a renda, esta é, basicamente, restrita e
limitada ao trabalhador assalariado e aos servidores públicos”.
Evilásio Salvador | Foto: Cristina Guerini Link
Evilásio Salvador é graduado em Economia pela
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, mestre e doutor em
Política Social pela Universidade de Brasília – UnB, onde leciona
atualmente.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como foi feito o estudo que mede a desigualdade
e a injustiça tributária no país, utilizando dados das declarações do
Imposto de Renda – IR entre 2007 e 2013?
Evilásio Salvador – O Brasil tem um sistema tributário bastante injusto:
grande parte da arrecadação dos tributos advém de uma tributação
indireta sobre o consumo e a produção de bens e serviços, e atinge os
mais pobres na sociedade, principalmente os trabalhadores de maneira
generalizada.
O estudo que realizamos tinha o objetivo de verificar se, ao menos, a
tributação direta, ou seja, aquela constituída por imposto sobre renda e
patrimônio, aliviava essa situação, isto é, se conseguia, de fato, ter
um perfil mais distributivo, com mais justiça, pelo menos nesse aspecto.
O estudo acabou revelando que nem a tributação direta no Brasil tem o
perfil de fazer justiça tributária e fiscal, porque ela é, simplesmente,
mais um elemento de concentração de riqueza.
O estudo foi realizado a partir de uma base pública de dados da Receita Federal, que foi disponibilizada neste ano, chamada “Grandes Números do Imposto de Renda”.
A Receita Federal até 1995/1996 costumava publicar dados consolidados
da declaração do Imposto de Renda de Pessoa Física. A partir de
1996/1997 a Receita parou de publicar esses dados e passou a publicá-los
de maneira muito restritiva, sem grandes informações, de modo genérico.
A publicação desses dados, em nenhum momento, fere qualquer sigilo
fiscal ou tributário porque são dados macro, e não nos permite ter
informações individuais de nenhum contribuinte da Receita Federal.
Depois da grande repercussão do livro de Thomas Piketty, que foi traduzido para o português como O Capital no século XXI (2014), tornou-se mais evidente essa falta de transparência das informações brasileiras. O próprio Piketty disse, em entrevistas e no próprio livro, que não conseguiu fazer essa pesquisa sobre o Brasil porque não obteve os dados sobre Imposto de Renda.
Acredito que a partir disso houve certo incômodo por parte da
Secretaria da Receita Federal e ela passou, novamente, a liberar uma
base de dados chamada “Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas”.
Essa base de dados permite o acesso a dados agregados de renda e
patrimônio dos declarantes do Imposto de Renda no Brasil, no período de
2008 a 2014, tendo como base os anos do calendário de 2007 a 2013.
Então, o estudo que realizamos analisou o perfil do Imposto de Renda
desses declarantes, considerando os quesitos de sexo, rendimento e
salário mínimo em unidades da federação, buscando o efeito concentrador
de renda e riqueza. A partir dessas informações sobre rendimentos e bens
e direitos, que é o equivalente a informações sobre patrimônio,
analisamos o conjunto das declarações que foram disponibilizadas em
planilhas de dados, ou seja, tivemos acesso a uma série de dados, como
rendimentos tributáveis, rendimentos tributáveis exclusivos, rendimentos
isentos, deduções com doença, saúde e educação, imposto devido, imposto
pago, dívida, ônus, patrimônio etc.
Na sociedade brasileira temos o hábito de dizer que existem “os 5% mais ricos”, mas a concentração é maior
IHU On-Line - Como o senhor chegou à informação de que 700 mil pessoas — 0,36% da população — têm patrimônio igual a 45% do PIB?
Evilásio Salvador – Chegamos a esse número a partir
da faixa de rendimento total, que dividimos em várias faixas: até meio
salário mínimo, de meio a um salário mínimo, de um a dois, de dois a
três, de três a cinco, de cinco a 10, de 10 a 20, de 20 a 40, de 40 a
80, de 80 a 160 e depois acima de 160 salários mínimos. Isso revela que a
concentração de renda está acima da faixa de 40 salários mínimos.
Quando analisamos os ativos declarados por essas pessoas, que são os
bens, obtemos um indicador de patrimônio delas, e quando observamos
esses dados, vemos que são 700 mil pessoas que estão nessa faixa; quando
analisamos o total de ativos informados à Receita Federal, observamos
algo como cinco trilhões oitocentos e vinte e cinco bilhões e
quatrocentos e quarenta e sete mil. Quando olhamos onde está grande parte dessa concentração,
vemos que está nessa faixa acima de 40 salários mínimos. Se dividirmos
esse valor pelo PIB estimado de 2013, chegamos à informação de que é
quase metade do Produto Interno Bruto.
Os declarantes que estão nessa faixa acima de 40 salários mínimos
têm, se verificarmos os ativos e os bens, 42% do total de bens
informados à Receita. Além disso, se quisermos, podemos analisar a
situação dos hiper-ricos, aqueles que estão acima de 160 salários
mínimos: esses têm 21,70% do patrimônio informado na declaração de
Imposto de Renda.
Na sociedade brasileira temos o hábito de dizer que existem “os 5% mais ricos”,
mas a concentração é maior. Se analisarmos a base de dados, veremos que
a faixa do 1% mais rico da sociedade brasileira é mais concentradora
quando analisamos detalhadamente quem é esse 1% mais rico. E mais, esses
ativos, bens e direitos e o rendimento dessas pessoas são muito pouco
tributados ou não são tributados. Por exemplo, nessa faixa dos
hiper-ricos, que estão acima de 160 salários mínimos, há cerca de 50 mil
pessoas que não pagam nada de Imposto de Renda, porque os seus
rendimentos são advindos de lucros e dividendos que são distribuídos
pelas empresas. Como lucros e dividendos são isentos do Imposto de
Renda, elas simplesmente não pagam Imposto de Renda.
IHU On-Line - Nesse grupo entram acionistas?
Evilásio Salvador – Sim, são basicamente os acionistas, os sócios-capitalistas, literalmente os donos de empresas. Considerando que há um deslocamento da economia para a esfera financeira,
grande parte dessas pessoas está vinculada ao mercado financeiro. É
importante lembrar que nesses dados não estamos considerando a sonegação
fiscal; analisamos apenas os dados declarados. E por que essas pessoas
declaram e não pagam Imposto de Renda? Porque a legislação permite,
desde 1995, que estejam isentos do pagamento de rendas auferidas com
lucros e dividendos, assim como a remessa de lucros e dividendos para o
exterior, que também não paga IR.
IHU On-Line - Quais são as principais conclusões da sua pesquisa?
IHU On-Line - Quais são as principais conclusões da sua pesquisa?
A estrutura tributária está na contramão do que é dito na Constituição
Evilásio Salvador – Que essas isenções no Imposto de Renda favorecem, claramente, os mais ricos na sociedade brasileira. A renda e o patrimônio
no Brasil têm uma brutal concentração regional e de gênero, quando o
combate às desigualdades de renda e de riqueza deveria ser a principal
agenda do Brasil.
O Sistema Tributário não
é simplesmente injusto porque tem uma tributação forte indireta, ele
também é injusto porque não tributa renda e patrimônio de maneira
adequada, e mesmo quando tem a tributação sobre a renda, esta é,
basicamente, restrita e limitada ao trabalhador assalariado e aos
servidores públicos. Isso ocorre porque nem todos os rendimentos
tributáveis de pessoas físicas são levados, obrigatoriamente, à tabela
progressiva do Imposto de Renda, ou estão sujeitos ao ajuste anual na
declaração de Imposto de Renda. Então, a estrutura tributária está na
contramão do que é dito na Constituição, segundo a qual
não deveria se permitir a discriminação em razão da ocupação
profissional ou da profissão exercida pelos contribuintes, ao submeter à
tabela progressiva do Imposto de Renda os rendimentos advindos do
capital e de outras rendas da economia ou quando algumas são submetidas,
por exemplo, a rendimentos de aplicações financeiras.
Parecemos inertes ou fazemos cara de paisagem para uma elite que não paga Imposto de Renda
Por isso acredito que esse estudo é muito importante no momento atual
do país, em que se propõe, exatamente, um ajuste fiscal sobre os mais
pobres, os trabalhadores assalariados, a população em geral e sobre as
políticas sociais, com um profundo corte de gastos, como o que está
sendo proposto pela PEC 55, com um ajuste brutal sobre a Previdência Social,
que atingirá mais de 75% da população economicamente ativa. Por outro
lado, parecemos inertes ou fazemos cara de paisagem para uma elite que
não paga Imposto de Renda, não tem seus patrimônios tributados e sequer é
incomodada pelo Estado, mas é concentradora de renda e de riqueza: 61
mil pessoas compõem a classe dos hiper-ricos, e 65% da renda deles tem
origem em elementos isentos ou não tributáveis. Isso revela uma enorme
injustiça fiscal que vem se agravando nos últimos anos, ao contrário de
uma perspectiva que se tinha de uma melhoria na distribuição de renda.
Essa melhoria se mostra limitada, porque quando estávamos discutindo
essa melhoria de renda no país, estávamos olhando apenas os dados do
mercado de trabalho.
IHU On-Line – Quais são os estados em que há maior concentração de renda e em quais há maior desigualdade?
Evilásio Salvador – O estudo não busca tratar
exatamente disso, mas consegue perceber em quais unidades da federação
estão os maiores rendimentos do país. Das 27 unidades da federação, são
cinco as que concentram a renda e a riqueza. De 5,8 trilhões de bens,
dois terços estão concentrados em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. Esse é mais um agravante das
desigualdades regionais do país.
Esses dados demonstram que a ideia de indicar caminhos e orçamento
público via um plano plurianual, como prevê a Constituição, para reduzir
as desigualdades regionais, não está acontecendo. Percebemos que renda e
riqueza estão concentradas em poucos estados. O paradoxo disso é que o
Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul estão passando por problemas fiscais e propondo, mais uma vez, um ajuste fiscal sobre os trabalhadores.
61 mil pessoas compõem a classe dos super-ricos, e 65% da renda deles tem origem em elementos isentos ou não tributáveis
IHU On-Line – Qual é o perfil da desigualdade e da injustiça tributária no país?
Evilásio Salvador – O sistema tributário comete um conjunto de desigualdades e injustiças, e a premissa desse sistema tributário, desde o governo FHC,
é de cobrar imposto e tributo dos mais pobres e dos trabalhadores
assalariados. Essa injustiça é cometida de duas formas: uma é porque os
tributos são fortemente concentrados na tributação sobre consumo,
então, quando os mais pobres vão consumir em relação a sua renda, o
peso da carga tributária torna-se injusto; segundo, existem outros
elementos para discutir sobre outras formas de desigualdade na sociedade
brasileira. Se olharmos isso do ponto de vista de gênero e de raça,
veremos que a situação é mais agravante, porque as mulheres e as
populações negras se encontram na faixa mais baixa de renda. Isso indica
que o fisco tributa muito mais, em relação aos demais contribuintes, as
populações femininas e negras.
Uma terceira injustiça é que aqueles tributos que tradicionalmente
deveriam servir para fazer justiça fiscal e tributária, não exercem esse
papel ou têm uma função limitada. Aí me refiro ao Imposto de Renda,
que se limita a cobrar a renda de trabalhadores assalariados e
servidores públicos, enquanto aqueles que vivem da riqueza, do seu
patrimônio ou são donos dos meios de produção, não são tributados ou são
pouco tributados. Um quarto fator é que o sistema tributário não
acompanhou o deslocamento da economia: a economia se deslocou desde os
anos 90 para o sistema do capitalismo financeiro. Esses ativos
financeiros não são tributados ou são pouco tributados, e há uma classe de financistas
que não produzem um parafuso, mas que acabam se beneficiando dessas
operações com baixa tributação, sobretudo quando comparada à tributação
da renda do trabalhador assalariado.
De 5,8 trilhões de bens, dois terços estão concentrados em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul
De outro lado, a tributação sobre patrimônio é irrisória, ou seja,
chega a ser motivo de piada em comparativos internacionais. Os
patrimônios tributados equivalem a menos de 4% da arrecadação total de
tributos - estamos falando de tributação de carros, IPVA, que incide
sobre o patrimônio da classe trabalhadora, porque jatinhos e
helicópteros não são tributados. A tributação sobre heranças também é
baixíssima em comparação com a tributação internacional, e o imposto
sobre grandes fortunas está mofando na Constituição Brasileira
desde 1988, sem regulamentação. Por fim, o sistema tributário tem
elementos de injustiça quando não contribui para atenuar as
desigualdades regionais.
IHU On-Line – Por que o imposto sobre grandes fortunas
deveria ser adotado e o que poderíamos caracterizar como grandes
fortunas?
Evilásio Salvador – Eu não defendo só a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas. Uma
primeira medida que poderíamos adotar para começar a construir um
sistema tributário mais justo seria elevar todos os rendimentos, e aí me
refiro, sobretudo, a elevar todos os rendimentos para a tabela do Imposto de Renda,
a qual deveria ter mais alíquotas. Eu me refiro a fazer uma tributação
sobre a renda do capital, o que permitiria aliviar a renda tributada dos
trabalhadores. Se corrigíssemos a tabela do Imposto de Renda pela
inflação, poderíamos isentar uma parcela grande da população
trabalhadora que não deveria estar pagando Imposto de Renda e, com isso,
poderíamos onerar os mais ricos. Outra medida associada a isso é a
tributação sobre patrimônios: poderíamos tributar o patrimônio no
sentido dos ativos físicos, de propriedades, assim como ativos
financeiros, como automóveis, jatinhos etc.
Em relação à tributação das grandes fortunas, ainda há uma discussão a
ser feita: seria possível estipular um conjunto de ativos de bens que o
contribuinte tem para estabelecer o nível de recolhimento de impostos
que teria de ser feito. Alguns estudos estabelecem uma renda acima de
cinco milhões de reais por ano. Eu sou muito simpático às proposições
que o economista Amir Khair propõe:
ele fez várias simulações sobre esse tipo de arrecadação. Essas medidas
fariam com que o Brasil demonstrasse que está enfrentando as
desigualdades sob todos os aspectos, começando por aqueles que têm maior
renda e maior patrimônio.