Fim de 2017, ano maldito para
política e principalmente para a classe trabalhadora brasileira, tão alheia a
tudo, a música que resume o momento é aquela que diz “isso tudo acontecendo e
eu aqui na praça dando milho aos pombos”, e de fato a perplexidade atingiu a
todos e todas nós de alguma forma.
Cada militante tem feito as suas
escolhas, individuais e coletivas, para enfrentar esse momento e tentar
contribuir para que pelo menos o conservadorismo oportunista não avance tanto
como temos assistido. Mesmo que a sociedade não se manifeste e que pesquisas e
outros indícios mostrem o contrário, o certo é que pessoas e grupos encontraram
o seu filão para alçar financiamento e projeção pela via democrático-liberal de
democracia meia-boca que consolidamos pós-ditadura civil militar.
Nem preciso citar nomes ou dizer
quem são os que se escondem atrás da bandeira verde-amarela para gritar contra
o PT, no impeachment e agora nas expressões culturais, identitárias e da
legislação social conquistada. Fazer cartaz a estes que impulsionam o milico-deputado é como “ajudar”
indiretamente quem merece ser esquecido pelo bem da humanidade.
Mas a questão não é essa. Pelo
menos para uma esquerda que pressupõe mudar, reformar ou transformar a
sociedade, seja pelo Estado ou pelas suas bases, ou tudo isso junto e
combinado, a questão deveria ser a cultura política. Onde mais do que um objeto
de estudo sociológico, deveria ser elemento da estratégia de qualquer partido político
ou organização que se auto reivindica de esquerda.
Nossas pautas estão cada vez mais
fragmentadas. Se o Brasil é o país da desigualdade, também é o de maior número
de reivindicações por metro quadrado, ou seja, não há justiça social que dê
conta.
Na contrapartida nenhuma reforma
que tenha sido realizada desde o governo Lula-Dilma será tão marcante do que o
Estado de Vargas e a estatização dos governos militares, duas reformas que hoje
são reivindicadas por nós, parte da esquerda brasileira. A primeira no combate
as reformas trabalhista e previdenciária e a segunda na resistência a nova onda
de privatizações.
O que está errado nisso? Simples,
reformamos o andar de baixo sem retirar o excesso do andar de cima, basta ver
como Temer (golpista) destruiu e destrói em poucos meses de governo quase toda
política social e econômica dos 14 anos de governos Lula-Dilma.
E como explicamos isso? Pelo caminho mais fácil, criticando a base do
governo Temer no congresso nacional. O erro em duas partes, uma é que esta
mesma base andou de rosto colado com a “onda” Lula-Dilma em seus palanques e
pedindo votos e com uma mudança medíocre do centro do poder, quase todos
retornam a sua real posição política anti-povo, anti-classe trabalhadora.
O caminho difícil é analisar a
fundo em que momento não realizamos uma reforma que impactasse parte da
sociedade brasileira para uma inflexão para uma nova cultura política
participativa, que incluísse a sua iniciativa em parte do seu tempo livre e com
disposição para defesa do seu projeto de país, Estado e sociedade.
Falta essa analise inclusive para
entender a passividade do momento e o atraso enquanto sociedade civil. Atraso
que se expressa na conciliação da constituinte de 1988 da qual Florestan
Fernandes já denunciou e alertou com relação a conciliação de centro-direita e
a conformação das conquistas sociais pela esquerda.
O velho discurso do “fizemos o
que foi necessário” ainda vive nas desculpas que a esquerda precisa dar a
classe trabalhadora. Mas o pior é que esse velho hábito que buscou tirar o país
das “garras” de uma ditadura militar semi-morta, com movimentações inclusive da
FIESP, à época, expressando que parte da burguesia também não se interessava
pelo meio que construiu para usurpar o poder só indicam a urgência do momento
atual e as alternativas que precisam ser construídas.
O centro do debate que deveria
ser “como constituir força para mudar a cultura política?”, não pode ser uma
tese de congresso ou discurso de palanque, com o risco de continuarmos a eleger
governos “bons” na média, mas que não buscam constituir parte da sociedade
enquanto força política hegemônica das mudanças, mesmo nas reformas.
Quando trato da cultura política,
incluindo a palavra participativa, não me refiro a cobrar os governos Lula-Dilma
por um eventual “orçamento participativo federal”, ou destinar que uma parte dos
recursos federais pudessem ser definidos pelos conselhos de políticas públicas,
não, não me apego a isso.
Me apego ao que objetivamente
tivemos no debate da passagem de ônibus, das encrencas da Copa e das Olimpíadas
e das escolas ocupadas, e me refiro sim ao orçamento público, mas em outra
direção, menos complexa do que uma emenda constitucional ou coisa do tipo. Me
refiro ao lugar que poderíamos ter constituído de força através do emprego dos
recursos públicos aplicados no “público”.
Digo, a quem serve o sistema público
de saúde? A quem serve o ensino básico e médio? A quem serve os pontos de cultura?
Iniciativa boa e também deturpada pelo oportunismo político.
Dinheiro público por dinheiro
público também não! Muito menos para o modelo associativo que temos. Mas para
um conceito que é aplicado em experiências como na Venezuela (conselhos comunais) (Allegretti et al. , 2012) e até nos EUA (pelas escolas públicas em Chicago) (Fung, 2003).
Ou seja, o Estado vem com a sua
parte de responsabilidade, injetando recursos para o bom funcionamento do
sistema público, porém uma parte dos recursos devem ser destinados a capacidade
de organização coletiva, diálogo, construção conjunta e solidária, novas
iniciativas, enfim, numa infinidade de ações e programas que só poderiam ser
feitos com a boa transparência que exige a legislação e a ideia de função
pública aliada ao investimento que só pode ser feito pela intervenção de todos
e todas.
E no que me baseio isso? Bom,
recentemente tive o apoio de uma companheira que permitiu que eu publicasse
minha dissertação de mestrado onde pude estudar e pesquisar o Orçamento
Participativo (OP) na cidade de Guarulhos (SP) articulando dois conceitos,
Poder Local e Democracia Participativa no exercício desta experiência de gestão
pública no período de 2001 a 2011.
Minha hipótese concentrava-se
primeiro na verificação se houve mesmo uma articulação (direta ou indireta) com
as ideias de Poder Local, aquelas preconizadas pelos professores Milton Santos,
Celso Daniel, Ladislau Dowbor, entre outros, e a Democracia Participativa em
Avritzer, Francisco Oliveira e outros. Pois, sendo o OP um lugar onde Estado e
sociedade deliberam onde devem ser investidos os recursos públicos, a partir da
ampla participação (assembleísta) com negociação e pactuação de compromissos,
operando na dinâmica dos municípios, dividindo-os por região, era obvio de que
estes territórios estavam sendo redescobertos pela sua população,
interativamente, buscavam resolver seus problemas imediatos via OP.
Uma vez forjada um novo homem e
uma nova mulher nas formas de expressar sua vida política, o OP seria então
apenas um meio para novas formas participativas livres da velha política
eleitoral-oportunista. Porém, a pesquisa parou por aqui. E a iniciativa do
governo do PT de Guarulhos também.
Basta lembrar que o OP é uma das
experiências de gestão pública mais bem sucedidas implantadas pelo PT desde
1989 em Porto Alegre e que espraiou-se pelo país e no exterior. Sendo disputada
inclusive pelo pensamento gerencial neoliberal, quando o Banco Mundial cria sua
versão do OP para controlar as finanças públicas dentro da “racionalidade” na
qual o público agora é o seu controlador direto.
E a cultura política? Ela mudou
de fato? Bem este é o centro do que foi pesquisado e mesmo que tenha conseguido
um universo bem pequeno de entrevistados, ao todo seis ex-conselheiros do OP
eleitos pelos seus pares, a população das regiões onde moram, o que foi
significativo foram os depoimentos que na média expressam o perfil da população
que foi seduzida pelo OP, todos entre 40 e 60 anos, poucos com ensino superior,
trabalhadores assalariados e moradores cuja preocupação era melhorar as
condições de vida do seu bairro ou região.
Desse ponto de partida temos nos
relatos o descrédito com a política tradicional, o envolvimento com a
participação política tornando-se uma parte do seu cotidiano de vida, as
realizações do OP como expressão do que Florestan Fernandes já atestava, “de
que o povo precisa de vitórias para seguir lutando”, esse era o sentimento
básico dos que passaram pelo OP de Guarulhos.
O que me remete a uma necessária
conclusão: a de que é possível mudar, transformar e construir uma nova cultura
política, com a participação a frente, para operar uma nova sociedade e um novo
Estado. Contudo, a tarefa do lado de cá é mais tortuosa, depende de tempo e
ousadia, que não podem ser contabilizados em nenhuma propaganda eleitoral de
governo.
Explico repetindo o que foi o
sentimento de parte do congresso nacional contra o decreto que Dilma havia
publicado que estabelecia o Plano Nacional de Participação Social duramente
atacado e taxado absurdamente como “plano soviético”, “socialização forçada”, e
coisas desse tipo que nada expressavam o interesse do decreto.
No final, a iniciativa mais
atrapalhou do que ajudou no quesito participação social. Primeiro, porque os
debates giraram em torno da luta político ideológica de uma direta que abraça a
conciliação de 1988, assim como comercializou a independência em 1822 e negociou
pelo alto a proclamação da república em 1889, ou seja, sempre barganhou o
Estado, mas nunca quis a democracia no pacote liberal na versão brasileira.
E ao fim de tudo, democracia
participativa não se impõe por decreto. Ou emerge como iniciativa de uma força
política que seja autentica, das massas populares nesse caso, ou vai ser
novamente um lugar vip na luta político-ideológica.
Lembremos que esse país moderno,
progressista, democrático e plural existiu apenas nas nossas cabeças e
impressões. Nosso combate deveria ter sido pelos direitos públicos já
consagrados, saúde e educação, promovendo reformas estruturais com os recursos
que tínhamos (em excesso) disponível, anos de deliberações de conferências e
uma legislação pouco implantada, forjada na concepção de público com “P” maiúsculo,
unindo forças com um servidor público que buscasse sentido na sua tarefa
pública aliada ao fortalecimento da participação da população nos seus rumos.
Não sei se será em 2018 que
alçaremos isso. Pelos discursos do conjunto da nossa esquerda, a democracia participativa
não está na pauta, mesmo que estratégica. Os meios para fazer isso dar certo
não passa pela constituinte do sistema político apenas, mas pelas bases que
podem defini-lo. Nem mesmo o referendo que Lula propõe tem condições nas atuais
circunstâncias legais. E aí reside o erro.
Seremos capazes de fazer o que a
sociedade, em especial, a classe trabalhadora quer? Se não assumirmos o risco
pela práxis ao ganhar as eleições,
isso se tornará novamente uma bravata de palanque. E essa traição não será
perdoada.
E qualquer mudança que seja pelo
caminho do estímulo à participação política não pode perder de vista os meios e
as formas para conquistar a população.
Recentemente, como disse,
publiquei minha dissertação em livro e tive muitas recepções carinhosas de
todos e todas, sei que muitos foram pelo profundo respeito a minha pessoa e
menos pelo tema que abordei. Espero que em algum momento isso se inverta.
Inclusive para receber as críticas necessárias para debatermos quais seriam os
melhores caminhos para constituir uma nova cultura política pela participação
intensa e pulsante da classe.